A evolução do futebol tem introduzido diversas transformações no jogo. O modelo de treinamento, a preocupação com a preparação física, as análises táticas, as estatísticas de desempenho, tudo isso tem alterado a maneira que se pratica futebol ao redor do mundo. No meio de todas as mudanças e evoluções nenhuma posição se reconfigurou tanto como a de goleiro.

Aquele papo de que “todo goleiro só é goleiro porque não sabe jogar com os pés” tem cada vez mais estado em desuso. Se antes o folclórico Higuita, Rogério Ceni, Chilavert eram exaltados pela qualidade de passe, ser habilidoso com a bola nos pés passou a ser uma valência exigida de todo bom goleiro. Mas como surgiu essa necessidade?

Goleiro holandês Jan Jongbloed, titular da Holanda na Copa de 1974
Foto: IMAGO

É difícil datar com precisão, mas há alguns marcos temporais extremamente importantes. Alguns remontam ao goleiro holandês Jan Jongbloed, titular da Holanda na Copa de 1974, o auge da laranja mecânica. Outros focam em 1993 quando a International Board alterou a regra do recuo, impedindo que o goleiro pegasse a bola com as mãos em um passe deliberado de um companheiro. Essa regra que visava reduzir a cera e dinamizar o jogo, acabou por obrigar o jogo com os pés do goleiro.

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No entanto, a percepção da importância do Goleiro bom de bola foi evidenciada por Manuel Neuer. O campeão da Copa em 2014 é o personagem célebre dessa revolução. O arqueiro do Bayern e da seleção alemã foi bastante incentivado pelo gênio Pep Guardiola a usar os pés. Pep fortemente influenciado pela escola de Cruyff, craque da Holanda e do Barcelona, ajudou Neuer a se desenvolver e desfilar em campo uma exímia habilidade de passe, uma qualidade absurda de reposição e uma leitura de jogo refinada, atuando em diversos momentos bastante adiantado e iniciando todas as jogadas ofensivas. Em 2019 outra mudança da International Board foi fundamental, a flexibilização dos tiros de meta permitindo que a bola entre em jogo a partir da área fez com que a participação dos goleiros crescesse bastante.

Goleiro Fábio teve que aprender a jogar com os pés para se adaptar ao esquema de jogo do treinador Fernando Diniz
Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC

Fato é que o goleiro não é mais só defensor da meta, além disso, ele tem participação extremamente importante na construção tática de uma equipe. Nos dias atuais vê-se de modo cada vez mais crescente a necessidade de goleiros que comportem-se bem com os pés, levando os treinadores a incluírem os arqueiros nos modelos de jogo. O treinador do Napoli, Luciano Spalletti, declarou que o futebol tornou-se um jogo de estratégia e de conquista territorial. Nesse contexto o goleiro torna-se fundamental para criar espaços, iniciar transições ofensivas e sair da pressão. O jogo posicional de Marcelo Bielsa, Jorge Sampaolli, Pep Guardiola e também praticado no Brasil por Fernando Diniz, utiliza-se bastante do goleiro para gerar superioridade numérica na saída de jogo desde trás. Além disso, a preferência pela linha defensiva alta, gera uma necessidade de que o camisa 1 leia bem os espaços e saia da área para evitar lançamentos longos, funcionando quase como um Líbero.

Ederson e Alisson, goleiros conhecidos por sua qualidade com os pés
Foto: Visionhaus/Getty Images

Os dois melhores goleiros brasileiros da atualidade são fortemente reconhecidos pela habilidade com os pés. Ederson e Alisson convocados nas duas últimas copas acumulam números de participações ofensivas, realizando inclusive assistências nas últimas temporadas da Premier League. Nos últimos anos os dados estatísticos comprovam que os goleiros estão completamente inseridos nos jogos. Percebe-se a cada ano aumento significativo no número de passes, lançamentos longos e interceptações com os pés por parte dos goleiros. No Brasileirão de 2020, o goleiro Everson, muito bom com os pés, realizou em média 32 passes por jogo e apenas 1,9 defesas por jogo. A evolução e o crescimento da participação dos goleiros não permite que analisemos os habituais esquemas táticos (4-3-3;4-2-3-1) com apenas 10 jogadores. Precisamos incluir os arqueiros, visto que a cada ano eles têm tido mais influência no jogo, tanto defensiva, como ofensiva.

Goleiro Éverson, destaque por sua qualidade com os pés
Foto: Pedro Souza/Atlético

Diante de todo esse cenário fica evidente que a posição de goleiros evoluiu fortemente, o jogo com os pés se tornou pré-requisito. É óbvio que eles precisam continuar sendo efetivos debaixo das traves, mas sua importância vai muito além das luvas. A máxima de que “todo bom time começa com um bom goleiro” continua sendo comprovada, talvez agora se traduza melhor desta forma: Todo bom time começa com um bom goleiro, que saiba também jogar com os pés.